KYIV, Ucrânia – Poderá 2020 ficar pior?
Pode ficar pior. Na verdade, o impensável acabou de ficar um pouco mais provável.
O presidente russo Vladimir Putin assinou na terça-feira uma ordem executiva baixando a fasquia para o uso de armas nucleares pela Rússia, autorizando o seu uso contra ataques não nucleares que “ameaçam a existência” da Rússia ou das suas forças nucleares.
O decreto anterior, decadente, da Rússia que regulava o uso de armas nucleares expirou este ano. A nova doutrina, intitulada “Fundamentos da política estatal de dissuasão nuclear da Rússia”, permite o uso de armas nucleares se um adversário atacar “instalações governamentais ou militares de importância crítica da Federação Russa, cuja incapacidade poderia resultar no fracasso da ação de retaliação das forças nucleares”.
Notavelmente, o decreto também autoriza o uso de armas nucleares após “relatórios confiáveis sobre o lançamento de mísseis balísticos na Rússia” – sem a ressalva de que as ogivas nucleares precisam estar sobre esses mísseis.
“Parece que este é o primeiro documento deste tipo que diz que a Rússia pode conduzir um ataque de retaliação baseado em informações do sistema de alerta precoce”, disse Pavel Podvig, um pesquisador sênior do Instituto das Nações Unidas para Pesquisa de Desarmamento, durante uma entrevista com a TASS, a agência de notícias estatal da Rússia.
Area Warfare
A ordem executiva de Putin vem em meio a um desmantelamento de tratados de armas da era da Guerra Fria entre os EUA e a Rússia.
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Tambem, a Ucrânia – um país pós-soviético que tem estado envolvido numa guerra terrestre de baixa intensidade com a Rússia desde 2014 – embarcou num programa de desenvolvimento de mísseis de médio alcance, que representa uma nova ameaça para a pátria russa.
No entanto, a Ucrânia não possui armas nucleares, levantando algumas sobrancelhas em Kyiv sobre a mensagem por trás da política russa de retaliação com armas nucleares contra mísseis armados com ogivas convencionais.
“Moscou quer enviar um sinal a todos os principais jogadores de que, haja ou não acordos de controle de armas – a Rússia está pronta para a guerra”, disse Mykola Bielieskov, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Estratégicos, um think tank ucraniano.
De acordo com a Associação de Controle de Armas, os Estados Unidos possuem cerca de 6.185 armas nucleares, enquanto a Rússia tem 6.490 armas desse tipo em seu arsenal. Desse número, a Rússia possui cerca de 2.000 dispositivos nucleares táticos, de acordo com a Revisão da Postura Nuclear do Departamento de Defesa de 2018. Os EUA, por sua vez, têm cerca de 230 armas nucleares táticas, de acordo com um relatório de 2019 do Bulletin of American Scientists.
Táticas, ou “não-estratégicas”, as armas nucleares geralmente se referem a ogivas de baixo rendimento (em relação às armas nucleares), que são utilizadas por armas de curto ou médio alcance. As ogivas nucleares táticas são mais adequadas para atingir instalações militares e unidades de combate, em vez de destruir cidades inteiras.
Alguns peritos dizem que o arsenal de armas nucleares tácticas da Rússia pretende compensar a sua inferioridade em relação aos EUA e a outras forças da OTAN quando se trata de armas convencionais de precisão.
De acordo com um relatório do Bulletin of Atomic Scientists: “A estratégia nuclear russa depende mais das armas nucleares tácticas, algumas das quais poderiam ser utilizadas se a Rússia estivesse a perder uma guerra convencional com a OTAN”.
O Kremlin, contudo, insiste que o seu arsenal nuclear é apenas para fins defensivos.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que a nova política russa de utilização de armas nucleares “estipula o que poderá exactamente forçar a Rússia a utilizar armas nucleares.”Ao mesmo tempo, enfatiza que a Rússia nunca poderá e nunca iniciará”, disse Peskov aos repórteres na quarta-feira em Moscou, informaram as agências russas.
Em suas operações de guerra convencional na Síria e na Ucrânia, os militares russos têm recorrido frequentemente a táticas de “guerra de área” da era soviética – em resumo, confiando no esmagador, indiscriminado, poder de fogo indireto ao invés de ataques de precisão.
Ainda a essa linha de pensamento, Bielieskov disse que a nova política de armas nucleares de Putin não é uma mudança radical na doutrina russa. Pelo contrário, o novo decreto marca o fracasso da Rússia em atingir seu objetivo de uma década de desenvolvimento de armas convencionais mais precisas.
“Falou-se muito na Rússia em meados dos anos 2010 sobre a dissuasão não nuclear. E a preservação da cláusula sobre o uso de armas nucleares contra grandes ataques convencionais sinaliza que a dissuasão não nuclear por meio do fortalecimento das capacidades convencionais russas ainda é um objetivo distante e ainda não é uma realidade”, disse Bielieskov ao Coffee or Die em uma entrevista.
Fresh Start
Em fevereiro, o Pentágono anunciou que a Marinha dos Estados Unidos tinha colocado a nova ogiva nuclear W76-2 de baixo rendimento a bordo de alguns submarinos com mísseis balísticos. Cada W76-2 tem um rendimento de cerca de 5 kilotons – aproximadamente ao par, em termos de rendimento explosivo, com as armas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki na Segunda Guerra Mundial.
De acordo com a Federação de Cientistas Americanos, as novas ogivas foram lançadas no final de 2019 a bordo do USS Tennessee – um submarino de mísseis balísticos de classe Ohio – durante uma chamada patrulha de dissuasão no Oceano Atlântico.
Os Estados Unidos já lançam ogivas nucleares de baixo rendimento concebidas para uso em bombas de gravidade e mísseis de cruzeiro lançados por bombardeiros. Um míssil balístico Trident lançado por submarinos – armado com múltiplas ogivas nucleares W76-2 de baixo rendimento – é mais capaz de derrotar os sistemas avançados de defesa aérea russos, dizem os especialistas, do que as armas lançadas a partir de aviões de guerra.
O Departamento de Estado dos EUA disse que o lançamento de armas nucleares de baixo rendimento “reduz o risco de guerra nuclear, reforçando a dissuasão e a segurança alargadas”.
Moscovo, no entanto, chamou às novas armas um movimento desestabilizador por parte dos EUA, que aumenta a probabilidade de guerra nuclear.
“Qualquer ataque envolvendo um míssil balístico submarino dos EUA, independentemente das suas especificações de armas, seria visto como uma agressão nuclear”, disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo, Maria Zakharova, aos repórteres em Abril.
“Aqueles que gostam de teorizar sobre a flexibilidade do potencial nuclear americano devem entender que, de acordo com a doutrina militar russa, tais ações são vistas como justificando o uso retaliatório de armas nucleares pela Rússia”, disse Zakharova.
Subir a barra
Assinado pelo Presidente Ronald Reagan e pelo líder soviético Mikhail Gorbachev, o tratado das Forças Nucleares da era da Guerra Fria, ou INF, mísseis proibidos com alcance entre 300 e 3.400 milhas.
No seu início, o Tratado INF destinava-se a reduzir o risco de guerra entre os EUA e a União Soviética – e continuou a ser a pedra angular da segurança europeia após a Guerra Fria. Quando a União Soviética se dissolveu em 1991, o Tratado INF rolou para se aplicar aos países pós-soviéticos, incluindo tanto a Rússia quanto a Ucrânia. Por sua vez, os EUA também continuaram a respeitar o pacto, apesar de não se aplicar a outros países como China e Irã.
No ano passado, a administração Trump se retirou do Tratado INF, alegando que a Rússia vinha desenvolvendo e implantando mísseis em violação aos limites do pacto há anos.
Por sua vez, Moscou anunciou que também estava deixando o tratado. Com a Rússia fora do pacto, a Ucrânia embarcou num programa de desenvolvimento de mísseis de curso de choque – sem limites de carga ou alcance – destacando um novo ponto de fulgor entre os dois antigos aliados soviéticos, que estão em guerra desde abril de 2014.
Kyiv anunciou posteriormente o desenvolvimento de um novo arsenal de mísseis capaz de atingir a Rússia a partir de locais de lançamento dentro do território ucraniano.
Ucrânia tem um legado de tecnologia de foguetes e mísseis da era soviética. Cerca de 40 por cento da indústria do programa espacial da União Soviética estava localizada na cidade ucraniana de Dnipro durante a Guerra Fria. É onde engenheiros soviéticos projetaram e construíram foguetes como o míssil balístico intercontinental Satanás, que foi projetado para atingir os Estados Unidos com armas nucleares.
Após a ruptura da União Soviética, e apesar da guerra em curso no leste da Ucrânia, Kyiv nunca desenvolveu um míssil capaz de ser lançado de solo ucraniano para atingir Moscou.
Até agora.
“A Ucrânia precisa de mísseis que, no mínimo, alcancem os Urais e cubram todo o território da Federação Russa”, disse Ihor Romanenko, um antigo general ucraniano de topo, em uma entrevista ao jornal ucraniano Glavred. “Tais mísseis seriam vistos como um dissuasor”
Tipping Point?
O último tratado de controle de armas que resta entre a Rússia e os Estados Unidos é o New START.
Assinado pelos ex-presidentes Barack Obama e Dmitry Medvedev em 2010, e com previsão de expirar no próximo ano, o New START limitou a Rússia e os EUA a 1.550 ogivas nucleares e 700 mísseis e bombardeiros pesados posicionados cada um.
De acordo com um relatório deste ano do Bulletin of the Atomic Scientists, os Estados Unidos atualmente colocam 668 lançadores estratégicos, armados com 1.376 ogivas nucleares – abaixo dos limites do New START.
O Presidente Donald Trump sugeriu que ele pode deixar o tratado New START expirar em meio a reclamações de alguns quadrantes em Washington de que o pacto não inclui a China e dá à Rússia brechas para desenvolver outras tecnologias de armamento.
Em 2018, Putin revelou que novas armas que ele tocou seriam capazes de derrotar os sistemas de defesa antimísseis dos EUA. Entre essas novas armas estava o veículo hipersónico Avangard, supostamente capaz de voar em Mach 27. O Avangard supostamente entrou em operação em dezembro.
Rússia também está desenvolvendo um drone subaquático acionado por energia atômica – o “Poseidon” – que irá rastejar até a costa de um adversário, detonar uma arma nuclear e criar um tsunami de 500 metros, ou 1.640 pés.
Apesar dos novos programas de armamento da Rússia, Putin disse estar disposto a renovar o Novo Pacto START quando este expirar em Fevereiro de 2021.
O Impensável
A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2014 estimulou as forças dos EUA e da OTAN a reforçarem a sua presença militar na Europa de Leste. Hoje, a aliança ocidental está rodando forças militares pela região do Báltico e conduzindo exercícios a um ritmo nunca visto desde a Guerra Fria.
A doutrina de defesa nuclear da Rússia cita essa acumulação de forças dos EUA e da OTAN na Europa Oriental, bem como de sistemas de defesa antimísseis americanos na região, como justificações para o uso de armas nucleares contra ataques convencionais.
De acordo com a Revisão da Postura Nuclear de 2018 do Pentágono, a Rússia “avalia erroneamente que a ameaça de escalada nuclear ou o primeiro uso efetivo de armas nucleares serviria para “desescalar” um conflito em termos favoráveis à Rússia”.
Os três estados membros bálticos da NATO, Estônia, Letônia e Lituânia, tornaram-se os países mais rapidamente militarizadores do planeta em termos de aumento anual dos gastos com a defesa. A Ucrânia, que não é membro da OTAN e não possui armas nucleares, reconstruiu exponencialmente o seu poder militar desde 2014, aumentando ainda mais o equilíbrio militar de poder pré-2014 na Europa de Leste.
A preocupação então, como agora, entre os líderes ocidentais é que Moscovo possa ultrapassar – por desígnio ou por acidente – e provocar um conflito com um país da OTAN. Se isso acontecesse, a aliança estaria obrigada por tratado a retaliar contra a Rússia, levantando o espectro de uma troca nuclear catastrófica.
“No caso de um confronto importante, a Rússia pode empregar as suas ogivas táticas para compensar a sua inferioridade convencional”, disse Bielieskov, o especialista ucraniano em defesa. “E isto, por sua vez, pode levar a uma eventual grande troca de ataques nucleares estratégicos”.