Há mais de 40 anos, Manaus, a maior cidade da Amazônia brasileira, tinha um bairro que flutuava no rio. Localizada perto do Encontro das Águas, a Cidade Flutuante era um labirinto de casas, igrejas, lojas, bares e restaurantes, ligados por ruas precárias feitas de tábuas de madeira. No seu auge, tinha cerca de 2.000 casas de madeira construídas sobre troncos, e uma população de mais de 11.000 pessoas.
Se não tivesse sido destruída, a Cidade Flutuante poderia ter se tornado um dos ícones modernos da Amazônia. Turistas e visitantes adoraram-na. Era tema de reportagens em revistas nacionais e internacionais, onde era frequentemente comparada a Veneza. A National Geographic publicou uma história sobre ela em 1962. E algumas das cenas do filme Oscar Aquele Homem do Rio foram filmadas lá. “Era o bairro mais vital de Manaus”, diz Milton Hatoum, um escritor da cidade, em português.
No entanto, debaixo dessa camada de fascínio havia um certo romantismo da pobreza. A maioria dos residentes da Cidade Flutuante eram famílias de baixa renda. O trabalho sexual e o consumo pesado de álcool eram abundantes. E como na maioria dos bairros pobres do Brasil hoje, havia falta de amenidades básicas, como saneamento e água corrente.
A história da Cidade Flutuante, como a história da cidade de Manaus, está intimamente relacionada com o Bum de Borracha. A borracha é feita de látex, que é extraída de uma árvore amazônica chamada Hevea brasiliensis. Ao contrário do algodão ou da cana de açúcar, as seringueiras não podiam ser cultivadas em grandes plantações na época, então as árvores nativas eram a única fonte de látex. Desde o final do século 19 até a primeira década do 20, praticamente toda a borracha do mundo veio da floresta amazônica.
O Bum de Borracha fez de Manaus uma das cidades mais ricas do Brasil. Apesar de sua localização remota, cercada por milhares de quilômetros de floresta tropical densa, Manaus foi uma das primeiras cidades do país a ter iluminação pública. Luxuosos edifícios locais, incluindo o Teatro Amazonas, foram construídos nessa época.
Mas tudo acabou na década de 1910, depois que os ingleses conseguiram contrabandear sementes e criar com sucesso uma seringueira que podia ser cultivada em plantações. Isso lhes permitiu criar suas próprias fazendas de borracha em suas colônias asiáticas, causando o colapso da indústria da borracha brasileira.
Quando a indústria entrou em colapso, muitas das pessoas pobres que trabalhavam na floresta coletando borracha mudaram-se para Manaus. Alguns deles decidiram construir casas flutuantes no rio usando os mesmos materiais e técnicas que usavam na floresta.
“Os pobres que queriam ficar perto do centro da cidade começaram a perceber que viver numa cidade flutuante era muito mais interessante para eles do que viver em áreas mais distantes”, diz Leno Barata, um historiador que escreveu sua tese de doutorado sobre a Cidade Flutuante, em português. “E morar no rio também tinha outras vantagens, como não pagar aluguel ou impostos da cidade”
Inicialmente, havia apenas um punhado de casas flutuantes desconectadas. Mas o número aumentou rapidamente após a Segunda Guerra Mundial, após um retorno temporário do Rubber Boom. Com a ocupação japonesa da Malásia, os Estados Unidos e as Forças Aliadas foram cortados do seu abastecimento de borracha e voltaram-se para o Brasil em busca de ajuda. Como resultado, dezenas de milhares de brasileiros, em sua maioria da região pobre do Nordeste, foram enviados à região amazônica para relançar a indústria da borracha. Quando a guerra terminou, muitos desses “soldados de borracha”, como ficaram conhecidos, acabaram em Manaus.
“Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 50, o número de casas flutuantes começa a aumentar substancialmente e acaba se tornando o que ficou conhecido como a Cidade Flutuante”, explica Barata.
Muitos moradores tinham empregos ligados ao rio. Barata diz que viver na Cidade Flutuante era extremamente conveniente para os pescadores, mas também para os comerciantes que compravam e vendiam mercadorias florestais, como castanhas, frutas, plantas medicinais e até mesmo peles de crocodilo. Vendedores vindos de comunidades florestais podiam trazer todos esses bens e descarregá-los diretamente para as plataformas flutuantes. Isso facilitava o seu trabalho, pois os poupava de ter que carregar o seu transporte até as lojas. Consequentemente, os comerciantes da Cidade Flutuante receberam um preço melhor sobre esses produtos do que os varejistas do interior, fato que gerou algum ressentimento entre estes últimos.
Como é o caso de muitas comunidades longínquas, a memória coletiva da Cidade Flutuante é difícil de desembaraçar. Algumas pessoas lembram o bairro com carinho, enquanto outras apenas lembram os elementos mais desagradáveis da vida no rio. Tanto as lembranças positivas como negativas podem sofrer com tropas e estigmas comuns sobre a pobreza, mas é importante lembrar que as realidades vividas pelos moradores da Cidade Flutuante eram muito mais complexas.
“Era uma favela!” diz Renato Chamma, um varejista local cuja família possui várias lojas na área desde os anos 20, em português. Chamma, que tem quase 90 anos, lembra o bairro flutuante como perigoso e insalubre, um lugar cheio de bares e bordéis.
O sobrinho de Renato Bosco Chamma, que era uma criança no final dos anos 50, diz que sua mãe não permitiu que ele e seus irmãos fossem para a Cidade Flutuante, mas às vezes ele a desobedeceu para poder pescar. Ele se lembra que em uma dessas ocasiões ele caiu na água e quase se afogou. Afogamentos de crianças eram relativamente comuns lá, como atestam os jornais da época. Para os moradores dos bairros mais abastados, histórias como as de Bosco só acrescentavam à percepção da Cidade Flutuante como um lugar de perigo.
Mas nem todos se lembram da Cidade Flutuante sob uma luz tão negativa. Hatoum, o escritor, costumava ir lá quando criança com seu avô. De acordo com ele, o povo era pobre, mas tinha dignidade. Ele descreve o lugar como vibrante, alegre, e agitado, com homens e mulheres vestidos com roupas coloridas cantando e tocando violão.
“Às vezes, quando chove ou o vento sopra, as passarelas e as casas construídas sobre troncos oscilam, dando a impressão de estar viajando rio abaixo”, diz Hatoum.
A demolição da Cidade Flutuante ocorreu na segunda metade da década de 1960. O governador do estado alegou que as casas não eram seguras e que a área estava repleta de problemas urbanos e de saúde. Mas havia outros interesses em jogo. Em 1964, o Brasil havia sofrido um golpe militar e o novo governo, visando fortalecer as fronteiras norte do país, tinha um forte interesse em desenvolver economicamente a região amazônica. Para isso, eles impulsionaram o que então era um plano de criação de uma Zona Econômica Livre em Manaus. Através de um programa de isenção de impostos, o objetivo era persuadir as empresas a construírem suas fábricas lá.
O rio teve um papel importante nesse plano. Como Manaus não tem quase nenhuma ligação rodoviária com o resto do país, os produtos manufaturados foram embarcados ao longo do rio Amazonas em direção ao Oceano Atlântico. E a Cidade Flutuante, com suas centenas de casas junto ao porto, foi um inconveniente desagradável. Assim, por volta daquela época, alguns dos sortudos moradores foram realocados para bairros próximos, onde lhes ofereceram casas, e outros acabaram de sair. Então, as casas flutuantes foram demolidas.
De certa forma, o plano da Zona Económica Livre, que ainda está em vigor, foi um sucesso. Criou milhares de empregos e trouxe dinheiro e prosperidade de volta à cidade. A população da cidade cresceu, de cerca de 200.000 pessoas nos anos 60 para mais de dois milhões hoje. Mas juntamente com estes ganhos, também houve perdas. Manaus se transformou em uma cidade industrial. O rio, riachos e riachos de água ficaram poluídos. Os assentamentos ilegais se multiplicaram nas franjas da cidade, impulsionando uma expansão urbana descontrolada que destrói grandes manchas de floresta tropical e persiste até hoje.
Hatoum observa que o fim da Cidade Flutuante coincidiu com essa mudança radical na essência de Manaus. “A Cidade Flutuante era parte de uma Manaus que vivia em harmonia com o rio e o meio ambiente”, diz ele. “Sua destruição foi simbólica porque também quebrou a ligação entre o mundo urbano e natural”
No lugar onde a Cidade Flutuante costumava estar, agora há um grande mercado municipal e um porto, com pequenas embarcações de passageiros e carga indo e vindo. Não restam sinais da “favela flutuante” que a família Chamma recorda, nem da atmosfera vibrante descrita nos romances de Hatoum. A Cidade Flutuante só vive agora nas suas memórias, pequenas peças de um puzzle maior e mais complicado.